As mal formações arteriovenosas (MAVs) são ligações diretas entre artérias e veias que contornam o leito capilar. São mal formações congênitas que afetam 0,01 a 0,5% da população sendo mais comum em pacientes entre 20 e 40 anos (1). São lesões com alta pressão e alto fluxo, podendo também estarem associadas a aneurismas cerebrais.
As MAVs podem ocorrer de forma isolada ou associadas a outras síndromes como: telangectasia hemorrágica hereditária ou malformação capilar-malformação arteriovenosa. Na primeira, os genes alterados são a ativina like 1(ALK1) visto na HHT tipo 1 e endoglin (ENG) visto na HHT tipo 2. Já na segunda os genes alterados são o RASA1 e o EPHB4. Fato é que estudos atuais tem cada vez mais descoberto as origens dessa patologia o que pode ser muito útil em terapias futuras.
Clinica
As mal formações arteriovenosas tendem a ser assintomáticas em 15% dos casos (25). Caso ocorram sintomas, os mais comuns são:
· Hemorragia intracerebral - É a manifestação mais comum de uma MAV sintomática sendo vista em 41 a 79% dos casos (25). Sabe-se que lesões pequenas e pediátricas tendem a ser mais sangrantes. A taxa de hemorragia de uma lesão não rota é de 1 a 3% ao ano (7) e a taxa de ressangramento de uma MAV rompida é de 3,2% ao ano (7). A taxa de mortalidade caso uma MAV rompa é de 10 a 15% (25).
· Convulsão - Aparece como sintoma em 10 a 40% dos casos (25).
· Déficit neurológico progressivo - Ocorre como sintoma em 6 a 12% dos casos (25).
· Cefaleia
Classificação de Spetzler-Martin
· Área Eloquente – Córtex sensório motor, visão, tronco, hipotálamo, tálamo, cápsula interna.
· Drenagem profunda – Contato com veias profundas.
Diagnóstico
Atualmente, o diagnóstico das MAVs é feita através da ressonância de encéfalo e da angiorressonância cerebral. A angiografia cerebral ainda segue sendo o padrão ouro de diagnóstico. Todavia, está sendo substituída por exames menos invasivos.
Tratamento
Visão Geral
Muito se discute sobre o tratamento dessas malformações e a uniformidade é pouco encontrada. Diversos médicos ainda optam por terapias invasivas. Outros, embasados pelo único ensaio clinico randomizado sobre o tema preferem o manejo expectante para MAVs não rotas. Fato é que, independente do tratamento ofertado ao paciente, trata-se de uma mazela com fisiopatologia mal compreendida onde o médico encontrará extrema dificuldade em encontrar um consenso sobre qual medida adotar. Deverá sim, adaptar caso a caso sempre com a participação e a anuência do paciente ciente dos riscos e benefícios inerentes ao caminho escolhido.
Dentro dessa miscelânea e possibilidades terapêuticas, tentarei forjar alternativas, obviamente não definitivas. Todavia, claras o suficiente para angariar possíveis discordâncias ou ajudar a trilhar um caminho nessa nebulosa caminhada contra as malformações arteriovenosas cerebrais. Atualmente, existem basicamente 04 opções terapêuticas para MAVs:
· Microcirurgia;
· Radiocirurgia;
· Embolização;
· Manejo expectante.
Microcirurgia
A microcirurgia é o tratamento clássico sendo sempre uma opção muito discutida pelos cirurgiões. Segundo um consenso de 2019 (7) sobre as abordagens das MAVs a cirurgia deverá ser considerada em:
· Lesões com graus 1 a 4 de Spetzler-Martin;
· Lesão residual;
· Recidiva da MAV.
Essas indicações são muito semelhantes às propostas por Greenberg em seu livro Manual de Neurocirurgia. O mesmo consenso refere que a existência de sangramento intracraniano com risco de vida secundário ao rompimento de uma MAV deve fortificar o pensamento sobre possível cirurgia de descompressão (7). Esse posicionamento medico de 2019 diz que a cirurgia é curativa (7). Todavia, com o advento de terapias que visam intervenção genética, afirmar que a cirurgia é curativa deve ser feito de forma mais cautelosa até porque, atualmente, já se cogita que fatores de crescimento (se não controlados) fazem com que as lesões vasculares se reestabeleçam. Fato é que a ressecção cirúrgica subtotal possui taxa de 57% de recidiva em 1 ano (2). Portanto, deve-se sempre indicar angiografia pós operatória para se excluir nidus residual (7). O estudo TOBAS de 2022 analisou 1.010 pacientes sendo que desses, 152 foram selecionados para realizar microcirurgia (10). Desses casos, 82% possuíam MAVs rotas e 18% possuíam MAVs não rotas. E 78% dos pacientes foram classificados com graus 1 ou 2 de Spetzler-Martin. O estudo concluiu que a microcirurgia foi curativa em 88% dos casos em um follow up de 18 meses (10). Em outras palavras, a intervenção cirúrgica foi efetiva em MAVs rotas grau 1 e 2 de Spetzler-Martin. Morgan et al em 2004 analisaram o risco cirúrgico de malformações graus 1 e 2 de Spetzler-Martin. Eles afirmaram que o índice de morbidade foi de 0,9% e de mortalidade foi de 0,5% (15). Já um outro estudo de 2017 apontou taxas de morbidade e de mortalidade de 5,6% e 1,7%, respectivamente pós microcirurgia, ou seja, levemente maior que a pesquisa anterior (16). Todavia, nessa análise foram elencados pacientes com graus 1 a 5 de Spetzler-Martin e os autores apoiaram a ideia de que a microcirurgia é mais efetiva em lesões graus 1 e 2 (16). Portanto, a grosso modo, pode-se simplificar embasado nas evidências disponíveis, que:
· Lesões rotas graus 1 e 2 de Spetzler-Martin possuem bom resultado pós microcirurgia;
· Lesões não rotas graus 1 e 2 de Spetzler-Martin não foram suficientemente avaliadas para se indicar de forma indubitável a microcirurgia;
· Em lesões graus 3 a 5 de Spetzler-Martin deve se evitar terapia microcirúrgica;
· A morbidade pós microcirurgia varia entre 0,9% a 5,6% em diferentes estudos;
· A mortalidade pós microcirurgia varia entre 0,5% a 1,7% em diferentes estudos.
Radiocirurgia
A radiocirurgia ganhou força como terapia para MAV através de diversos estudos que demonstraram sua efetividade. Um estudo de coorte de 2017 concluiu que a radiocirurgia é uma boa opção para o tratamento de MAV (4, 9). O mesmo estudo ainda afirmou que MAVs rompidas tiveram maior taxa de obliteração quando comparadas a MAVS não rompidas (68% x 53%). As malformações tinham, em media, 3,5cm. Todavia, MAVs rompidas pós radiocirurgia tiveram maior incidência de sangramento pós procedimento (10% x 4%) (4). Dessa maneira, consensos indicam a radiocirurgia para terapias de MAVs quando:
· Existe contraindicação à microcirurgia;
· Lesões grau 5 de Spetzler-Martin;
· MAVs pequenas (menores que 3 cm), profundas e em áreas eloquentes.
Um outro estudo de 2016 aponta ser a radiocirurgia uma boa possibilidade em MAVs não rotas grau 3 de Spetzler-Martin (14). Um estudo de 2016 afirmou que a radiocirurgia obteve êxito em 75% dos pacientes com graus 1 a 4 de Spetzler-Martin (17). Todavia, a taxa de sangramento pós procedimento foi de 0,9% ao ano no período de latência, a taxa de morbidade foi de 5% e a taxa de mortalidade foi de 4% (17). Ilyas et al concluíram que as taxas de hemorragia e de mortalidade pós radiocirurgia foram, respectivamente, 8% e 2% (18). Byun et al em 2020 cogitaram a possibilidade de repetir a radiocirurgia em MAVs residuais. Argumentam que a taxa de complicações operatórias é mais elevada (ainda mais em um nidus previamente irradiado) e que a embolização não é capaz de obliterar efetivamente pequenas artérias (19). As taxas de complicações do segundo procedimento variam entre 4,9% a 7,4% (19, 20). Em MAVs muito grandes (graus 4 e 5 de Spetzler-Martin) aconselha-se terapia multimodal com embolização pré radiocirurgia (19). Isso é feito para se evitar os efeitos deletérios de altas doses de radiação no cérebro. Ou é possível também reduzir o tamanho da lesão com radiocirurgia e tentar a microcirurgia a posteriori (19). Inclusive, um estudo de 2015 analisou pacientes com MAVs com grau 4 de Spetzler-Martin e 5,9 cm de tamanho, em média. A radiocirurgia foi indicada como procedimento pré operatório, reduzindo o tamanho das lesões para facilitar a posterior cirurgia (13). Iulia et al em 2020 postularam a radiocirurgia como terapia para MAVs não rotas. Concluíram se tratar de uma boa alternativa com taxas de obliteração de 76%, taxa de sangramento anual de 1,1%, taxa de morbidade de 4,6% e taxa de mortalidade de 2% (21). Desse maneira, com as evidências disponíveis, podemos elencar que a radiocirurgia:
· Pode ser indicada em pacientes com contra indicação à microcirurgia;
· Pode ser indicada em lesões graus 3 a 5 de Spetzler-Martin associada a tratamento multimodal (embolização pré ou cirurgia pós);
· Pode ser indicada em lesões graus 3 a 5 de Spetzler-Martin como terapia única mesmo que em alguns casos possa ser necessária uma segunda dose de radiação;
· Pode ser indicada em lesões graus 1 e 2 de Spetzler-Martin profundas em áreas eloquentes com difícil acesso cirúrgico;
· Pode ser alternativa em MAV residual rota mesma que essa já tenha sido previamente irradiada;
· Sua morbidade varia entre 5% a 8% em diferentes estudos;
· Sua mortalidade varia entre 2% a 4% em diferentes estudos.
Embolização
A evolução das técnicas de embolização tem tornado tal procedimento opção para diversas mazelas neurológicas. Entretanto, para MAVs o índice de recorrência após embolização é de 86% em 1 ano (2), ou seja, alto. Desse modo, o consenso de 2019 assim como Greenberg desaconselham usar essa alternativa como terapia standart para tais malformações (7, 11). Sugere-se indicar embolização:
· Pré operatória;
· Pré radiocirurgia.
Um estudo de 2019 ainda foi mais categórico na indicação de embolização para MAVs, aconselhando como medida pré operatória, apenas, em lesões grau 3 de Spetzler-Martin (11). Já uma análise de 2015 com 20 pacientes destacou ser a embolização curativa em MAVs rotas com graus 3 a 5 de Spetzler-Martin profundas e em áreas eloquentes. Wu et alpublicaram um estudo em 2019 com 597 pacientes (1/3 portadores de lesões grau 3 de Spetzler-Martin) onde afirmaram que essa terapia com intuito curativo possui altas taxas de complicações (24,1%), com taxa de mortalidade de 1,5%. Destacam, dessa forma, que a embolização deve ser opção adjuvante (22). Wang et al em 2020 analisaram 258 pacientes com MAVs graus 1 e 2 de Spetzler-Martin que foram submetidos a tratamento multimodal (embolização seguida de microcirurgia). Em MAVs rotas o sucesso foi de 88% e em MAVs não rotas de 92,5%. A taxa de morbidade foi de 1,2% (23). Crowley et al em 2015 verificaram a incidência de efeitos adversos da embolização no tratamento de MAVs (como foco adjuvante ou como única medida terapêutica). A taxa de morbidade foi de 9,6% e a taxa de mortalidade foi de 0,3% (24). Caso a embolização seja indicada, a cirurgia deve ser feita de 3 a 30 dias após e a radiocirurgia 30 dias após. Fato é que a embolização não deve ser indicada como tratamento definitivo pelo seu alto índice de recanalização. Perante tais fatos:
· A embolização, quando indicada, deve ser feita como terapia antecessora da microcirurgia ou da radiocirurgia em lesões de graus 1 a 5 de Spetzler-Martin;
· A taxa de morbidadade da embolização está entre 1,2% e 9,6%;
· A taxa de mortalidade da embolização está entre 0,3% e 1,5%.
Manejo Conservador
O manejo conservador em MAVs não rotas ganhou força e adeptos em virtude do discutido estudo ARUBA. Tal ensaio clinico randomizado foi enfático em afirmar que o manejo expectante é a conduta mais apropriada (5). Em virtude das inúmeras criticas sobre a metodologia do estudo as taxas de procedimentos sofreram pouco impacto (6). Os profissionais insistiram em não concordar com os resultados do ARUBA. O delineamento foi duramente questionado por:
· Incluir intervenções heterogêneas no mesmo estudo;
· Desproporção entre o número de casos de cada tipo de intervenção;
· Acompanhamento curto de 3 anos;
· Exclusão de paciente pediátricos.
É fato que o estudo ARUBA que defende fortemente o manejo expectante possui vícios metodológicos em sua formatação. Entretanto, trata-se ainda do único ensaio clínico randomizado abrangente sobre o tema o que o torna, ao menos, intrigante. Uma MAV não rota possui baixa taxa de sangramento anual e qualquer neurocirurgia é passível de complicações. Muitas MAVs com grau 1 a 4 de Spetzler-Martin estão localizadas em áreas eloquentes o que incrementa a possibilidade de sequelas pós operatórias ou intervencionistas. Portanto, não é atitude impensável optar pelo tratamento conservador e expectante. Pode ser, ao menos, considerada uma interessante opção.
Terapias Futuras
Diversas terapias futuras estão sendo cogitadas, principalmente as de cunho genético. Dessa forma, medicamentos que atuam nesse possível mecanismo de formação das MAVs tem sido estudados para controle da doença. Um exemplo é o sirolimo que em um estudo se mostrou eficaz no controle da evolução da doença (3). Trata-se, porém, de manejos ainda não consagrados.
Conclusão e Manejo Prático
Após essa vasta análise, julgo procedente dividir o tratamento das malformações arteriovenosas cerebrais em dois grupos:
· Rotas;
· Não rotas.
Rotas
· Graus 1 e 2 de Spetzler-Martin – Sugiro embolização seguida de microcirurgia. Se a lesão estiver em área eloquente ou profunda pode se considerar a embolização seguida de radiocirurgia.
· Grau 3 a 5 de Spetzler-Martin – Sugiro embolização seguida de radiocirurgia ou radiocirurgia com mais doses (se necessário).
· Observação - Se existe contraindicação à microcirurgia considerar como primeira escolha a radiocirurgia.
Não rotas
· Graus 1 a 5 de Spetzler-Martin – Sugiro observação.
Porque observação? Inicialmente, vale relembrar que não existe consenso sobre como manejar uma MAV e cada cirurgião deve individualizar os tratamentos em conjunto com seu paciente. A questão sobre o manejo expectante foi muito discutida em virtude do estudo ARUBA. E achei o modelo terapêutico mais adequado para MAVs não rotas pelo o que se segue.
O desfecho mais trágico, comum e letal de uma malformação arteriovenosa cerebral é a hemorragia intracraniana (24, 25). Com ela, percebe-se as maiores taxas de morbimortalidade. Diversas séries mostram que o índice de hemorragia de uma MAV não rota está entre 1 a 3% ao ano. Estudos também relatam que o índice de mortalidade da microcirurgia é de 0,5 a 1,7% (dependendo do grau da MAV) e da radiocirurgia é de 2 a 4%. Já a embolização tem taxa de mortalidade de 0,3 a 1,5% além de não se prestar como terapia definitiva. E isso sem considerar a morbidade inerente aos procedimentos. Desse modo, pode-se observar que as terapias disponíveis possuem taxas de mortalidade próximas ao desfecho mais grave de uma MAV o que as torna ao menos discutíveis. E isso sem considerar que uma lesão que rompa não necessariamente levará o paciente à óbito, fato esse que ocorre em aproximadamente 10 a 15% dos casos (25). Ademais, caso um inesperado rompimento ocorra a maior parte dos indivíduos estará em condições de receber alguma alternativa terapêutica.
Portanto, pode-se concluir com isso que:
· Os índices de sangramento de uma MAV não rota são muito semelhantes aos índices de mortalidade dos procedimentos disponíveis;
· Caso um inesperado rompimento ocorra 10 a 15% dos pacientes irão à óbito. Os demais serão candidatos a algum tipo de terapia. Ou seja, um rompimento de uma malformação não é sinônimo de morte;
· Observando tais percentuais percebe-se que os riscos de se realizar algum procedimento em lesões não rotas (no que envolve morbimortalidade) são mais elevados que o risco anual de sangramento de uma MAV;
· As malformações arteriovenosas (MAV) são lesões complexas com fisiopatologia ainda não totalmente esclarecida, sem consenso terapêutico e que irão, por um bom tempo, gerar discordâncias de qual o melhor manejo a ser proposto.
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