Para médicos neurologistas, neurocirurgiões e intensivistas que costumam trabalhar em escala de plantão é muito comum a necessidade de efetivar o exame para averiguar morte cerebral. Todavia, mesmo sendo atividade corriqueira refere-se a uma análise que ainda gera dúvidas aos médicos e aos pacientes. Os primeiros tendem a se sentir inseguros frente a inúmeros parâmetros que devem ser testados para garantir uma boa e fidedigna conclusão técnica. Os segundos focam exclusivamente na falácia de que um ente querido pode ter decretada a morte encefálica e passar a ser doador de órgãos, mas, na verdade, ainda não faleceu efetivamente. Será que, realmente, meu familiar está morto? Na verdade, esse processo é posto em prática com o intuito de se selecionar órgãos para doação. Tal dinâmica é regulada pela Lei 9.434/97 que é expressa em afirmar quea retirada de órgãos e tecidos para transplante deve ser precedida de morte encefálica constatada por 2 médicos não participantes da equipe de transplante ou de remoção. Portanto, um doador só será configurado com a constatação de morte encefálica.
Durante vários anos a Resolução 1.480/97 foi a cartilha que deveria ser seguida pelos médicos frente a um paciente com provável morte cerebral. Todavia, com o intuito de tornar a análise mais dinâmica e segura, em 2017, a Resolução 2.173/17 promoveu algumas modificações. Atualmente, o procedimento para verificação de morte encefálica deve ser iniciado em pacientes em coma não perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apnéia persistente. O individuo deve estar em tratamento ou observação hospitalar por, no minimo, 6 (seis) horas. Em outras palavras, uma pessoa procedente do domicilio que adentra em uma emergência com suspeita de morte cerebral não está apta a desencadear o protocolo. Para questões didáticas dividi o protocolo em três etapas distintas: os critérios básicos, o exame médico e o exame complementar.
Critérios Básicos:
Alguns critérios básicos devem ser preenchidos para se iniciar o exame médico propriamente dito. Sem eles devidamente definidos o protocolo deverá ser interrompido.
1) Lesão encefálica conhecida e irreversível;
2) Ausência de condições tratáveis tais como distúrbios metabólicos e hidroeletrolíticos, hipotermia ou intoxicações farmacológicas, como sedação
3) Temperatura corporal superior a 35º C;
4) Saturação arterial acima de 94%;
5) Pressão arterial sistólica maior que 100mmHg;
6) Tratamento ou observação hospitalar por, no mínimo, 6 horas. Para pacientes com encefalopatia hipóxico-isquêmica esse tempo deve ser de 24 horas;
7) Todo paciente deve possuir um exame do imagem (tomografia ou ressonância) ou de liquor (LCR) que comprove a causa do coma.
Exame Médico:
Representa a parte mais complexa e delicada de uma análise de morte cerebral, sendo composto por dois exames efetivados por diferentes profissionais. Vale relembrar que os familiares devem ser avisados e esses podem solicitar a presença de um médico especialista de confiança para acompanhar o exame. Esse poderá ser feito por um neurologista, um neurocirurgião, um intensivista ou um emergencista. O segundo exame clinico deverá ser feito em um intervalo de acordo com a idade do paciente.
1) Paciente entre 7 dias e 2 meses – Segundo exame deve ser efetivado com intervalo de 24 horas após o primeiro;
2) Paciente entre 2 e 24 meses - Segundo exame deve ser efetivado com intervalo de 12 horas após o primeiro;
3) Paciente acima de 24 meses - Segundo exame deve ser efetivado com intervalo de 1 hora após o primeiro. Tal interim foi uma das modificações impostas pela Resolução 2.173/17. Anteriormente, para se fazer a segunda análise era necessário aguardar 6 horas após a primeira.
O protocolo médico propriamente dito permanece mais ou menos inalterado. Ele é composto pela comprovação de coma não perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apnéia persistente. A reatividade supraespinhal é testada através dos reflexos fotomotor, oculocefálico, corneopalpebral, vestibulocalórico e tosse. Um teste de apnéia é suficiente para comprovar a apnéia persistente e, geralmente, ele é realizado pelo primeiro examinador. A eliminação do segundo teste foi outra novidade da Resolução 2.173/17. O exame clinico deverá seguir o seguinte roteiro:
1) Coma Não Perceptivo – Glasgow 3;
2) Reflexo Fotomotor – Colocar luz sobre as pupilas. No caso de morte cerebral, elas devem permanecer de tamanho médio e não reativas à luz. Em pacientes normais haveria uma constrição ao estímulo luminoso chamada de miose (pupilas ficam pequenas). Testa o complexo oculomotor via núcleo de Edinger-Westphal;
3) Reflexo OculoCefálico - Também conhecido por “olhos de boneca”. Ao se girar a cabeça de um paciente em um sentido, os olhos se movem no sentido oposto. Quando existe morte cerebral esse movimento não ocorre. Os olhos ficam congelados. Testa os nervos oculares e vestibulares;
4) Reflexo CorneoPalpebral – Tocar com um pedaço de algodão uma das córneas. Em pacientes com morte cerebral não haverá nenhuma resposta palpebral. Em pessoas normais ocorre um piscar bilateral. Testa o nervo trigêmeo (via aferente) e o nervo facial (via eferente);
5) Reflexo VestibuloCalórico – Elevar a cabeceira a 30º para posicionar verticalmente os canais semicirculares vestibulares (nervo vestibular). Deve-se injetar 50 a 100ml de água gelada (mais ou menos 5º C) em um dos ouvidos. Na presença de morte cerebral não haverá nenhum movimento ocular. Em um paciente normal os olhos desviam para o lado do ouvido estimulado. Deve-se aguardar 3 minutos e repetir o processo no outro ouvido. Testa o nervo vestibular (via aferente) e os nervos abducente e oculomotor (via eferente);
6) Reflexo da Tosse – Insere-se uma cânula através do tubo de ventilação. Se existir morte encefálica não haverá tosse. Testa os nervos vago e glossofaríngeo.
7) Teste de Apnéia – Pré oxigenar o paciente com FiO2 100% por 10 a 30 minutos ou até atingir uma PaO2 maior que 200. Desconectar o paciente do ventilador e coletar a primeira gasometria. Colocar no tubo um cateter com oxigênio a 6 litros/minuto por 10 minutos. Observar se ocorrem movimentos respiratórios. Se ocorrer, suspender o teste. Se não ocorrer deve-se coletar a segunda gasometria. Se há morte cerebral a PCO2 estará maior que 55 ou irá aumentar mais que 20 do nível basal do paciente na segunda coleta. O teste deverá ser suspenso se forem verificados movimentos respiratórios, ocorrer hipotensão (PAs menor que 100mmHg) ou a saturação sofrer queda brusca.
ATENÇÃO: Quando existir qualquer dúvida frente a um dos testes anteriores, o protocolo deverá ser de imediato suspenso.
Exame Complementar:
Para finalizar o protocolo de morte cerebral é necessário a realização de um exame complementar. Esse pode verificar a ausência de atividade elétrica (eletroencefalograma), a ausência de atividade metabólica cerebral (cintilografia ou pet scan) ou ausência de atividade circulatória (arteriografia cerebral ou doppler transcraniano). Como esse documento complementar fecha-se o protocolo.
* Existem algumas contra-indicações à doação de órgãos:
Doenças infecciosas – HIV, HTLV, Hepatite B e C;
Meningoencefalite herpética;
Linfoma;
Doença por príons;
Neoplasia maligna ativa (exceto melanoma);
Colagenoses (lúpus, esclerodermia, artrite reumatoide);
Uso de drogas ilícitas endovenosas.
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